Le cabinet de M. V.
Este conjunto de fotografias é mais um capítulo na descoberta e divulgação do espólio de Lazar Slavick que tem vindo a ser estudado e apresentado ao longo dos últimos anos. À semelhança do último lote, este conjunto deve ser lido em relação ao trabalho de Carla de Oliveira que apresenta parte do espólio de Marion de Guillaumin que hoje sabemos ter sido a grande ligação romântica, ainda que tardia, de Slavick.
Desta vez Francisco Feio traz mais um conjunto deste obscuro autor e que agora se relaciona diretamente com esta cidade; tendo em conta que já no lote divulgado anteriormente essa relação existia, somos levados a pensar que este será um lugar importante no que respeita à sua extensa produção em Portugal.
Não foi fácil traçar a genealogia deste trabalho mas estamos em crer que conseguimos encontrar grande parte dos dados que nos permitem entender, pelo menos, algumas das motivações subjacentes a estas fotografias.
Um dos pontos de partida, se não o principal, foi a epistolografia trocada com Augusto Bobone (1825-1910) o fotógrafo português, herdeiro do Atelier Fillon e dono da Salão Bobone ao Chiado, face ao Museu de Arte Contemporânea e que continuou muito para além da sua morte como espaço de divulgação da arte moderna e onde Slavick terá mostrado, por diversas vezes, o seu trabalho. A aproximação entre os dois deu-se por iniciativa de Carlos de Bragança que lhe terá falado deste seu fotógrafo (Bobone era fotógrafo oficial da Casa Real). Fala-lhe do seu trabalho, sobretudo da colecção de Foto-radiografias que realizou em 1896 e que causaram alguma sensação à época. Slavick, que já tinha ouvido falar dele, sobretudo em Paris onde tinha ganho uma medalha de ouro na exposição Universal de 1900, insiste em que sejam apresentados o que resultou numa intensa, apesar de curta, amizade. Terá sido Bobone, sabendo do interesse dele por diversas áreas da ciência, que lhe fala das fotografias que tinha feito em Coimbra havia alguns anos. Rapidamente Slavick organiza uma viagem a Coimbra, com Bobone, para poder admirar e registar o que restava das colecções iniciadas por Domenico Vandelli (1735-1816), o famoso naturalista italiano, durante a sua estadia em Portugal. Contudo, não era o lado do naturalista que mais lhe interessava mas sim o de Teratologista (1). Sabia que ele tinha reunido uma colecção de monstros e conhecia bem a sua Dissertatio de monstris publicada em 1776. É atrás destes exemplares que ele vai e acaba por recolher uma série de fotografias mas cuja identificação e atribuição precisa resta por apurar. Mais certa é esta pequena selecção de imagens que cria em torno de alguns exemplares em exposição nos museus da universidade. Fazem parte de um conjunto vasto e heterogéneo reunido sob a designação de Le Cabinet de M. V., numa alusão direta a Vandelli apesar de terem pouca, ou nenhuma, ligação direta a esta figura singular que marcou uma mudança significativa no nosso modo de entender as ciências naturais.
Tal como Bobone, Slavick tinha tido instrução artística o que lhe permitia aliar a plasticidade da pintura à natureza mais descritiva e realista da fotografia (2). Era frequente intervencionar as fotografias com lápis de carvão ou grafite e tintas criando imagens ambíguas quanto à sua origem, o que aliás já tem sido confirmado em trabalhos anteriormente mostrados. Este conjunto não escapa a essa técnica levando o reconhecimento da imagem fotográfica a limites que, frequentemente, anulam o carácter meramente fotográfico destas imagens e constroem um universo plástico mais de acordo com as convenções pictóricas das vanguardas da época que da fotografia. Aliás, Slavick raramente se deixou encantar pela fotografia meramente documental se bem que tenha, no seu espólio, exemplos que estão ao nível da produção do género no seu tempo.
(1). Do lado naturalista de Vandelli, sabe-se que o que o fascinava mais eram as Viagens Philosophicas de que foi mentor, em especial a do seu aluno Alexandre Rodrigues Ferreira à Amazónia, que teve o seu início em 1783 e terminou 9 anos mais tarde e igualmente as realizadas a terras de África. Uma outra, no interior do Brasil, a de Langsdorff em 1825 interessava-lhe igualmente e sobre ela tinha recolhido muita informação. Sobretudo por causa da presença na expedição de Hercule Florence que se viria a tornar numa personagem algo misteriosa no que diz respeito ao início da fotografia no Brasil.
(2). Este interesse pelas artes vinha de longe através de ligações familiares ao mundo das artes. Curiosamente um bisavô seu tinha sido colega de Dominco Pellegrini (1759-1840) na academia em Veneza. Daí tinham ido para Paris onde a Revolução os encontra e mais tarde seguem caminhos separados. Pellegrini acaba em Portugal onde pinta em 1895 a sua obra-prima, um retrato de Mme Junot e da sua filha Josephine (hoje no Museu de Bordeús) pintado no recente e moderno estilo inglês que aí tinha aprendido durante a sua estadia do outro lado da Mancha. Em 1810 é deportado com Vandelli para Angra na sequência do final das invasões francesas, acusado de ser afrancesado. Ironicamente, a fragata que os transporta é a Amazona.
francisco feio, maio de 2016
1 comentário:
Sobre o Francisco Feio, tipo muito giro :) - creio que foi a segunda e última vez que o vi e ouvi - lembro-me de lhe dizer que tinha o rabo gelado, sorriu, provavelmente sentiria de igual modo o próprio rabo. Passaram 7 anos (o Calvino foi em 2009, certo? :)
Anyways, congrats for la résistance (nonstop :) do núcleo duro chez P5.
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