Um dia partiria.
Faltava a hora clara a sair do calendário e a apresentar-se como o momento certo. Entretanto exercitava a caneta funcionalmente para pagar as contas do mês, enquanto lia, para aliviar as costas, mais um poema de libertação. Agora era uma canção de Rilke, enquanto a tentação da fuga crescia ao ritmo da chuva e da máquina de lavar. Tinha esse tempo: o que demora a centrifugação de cinco quilos de roupa suja. Em casa poucos anestésicos, nenhuma droga boa. Só facas e água nos olhos q.b. vermelhos. Vontade súbita de ser chão. Ter chão. Ser rio, pensava, e quem diz rio diz árvore, um mastro equivalente ao tamanho dos seus braços, talvez um terreno fértil coberto de erva e papoilas e frutos e laranjas e aves que trazem nos bicos as mãos com que nunca aprenderá tanta coisa, como o Poema do Êxtase de Scriabin, porque importa apenas a saída para fora do vazio da casa. Vontade súbita de cordel dado ao vento, pensava, vontade de prender bem os nós contra a brisa vaga, na leve linha horizontal quase invisível. Àquela hora tudo era uma primeira dimensão, tudo transportava para o imediato e corpóreo a voz do mar.
Saiu.
Sentou-se onde a terra húmida alimentava os frutos. Atrás da árvore, uma sombra de perfil. Um homem rompe o círculo. Pareceu-lhe poético ou com um sentido maior que um vírgula seiscentos e dezoito, número de constante irracionalidade que nos últimos tempos estava em todo o lado. E por dento o escuro. Só a impressão de ser oca no desaprender de chorar que se tornara a vida e depois os no sense e a sede e as pessoas e ele ali a chegar-se e de novo aquilo em que não queria pensar com as mesmas palavras, os desencontros, o peso do irremediável, o tempo, a dor fina entre a mão e o peito a atravessar o braço. Que não olhe, pensava, que a deixe cheia do seu nada pessoal. Se cantar, talvez se afaste, talvez não chegue a vê-la e desapareça com o sol que entra terra adentro. E a voz de Julie e as memórias e aquele momento em que praticamente enlouquecera. Indiferente ao espaço e ao frio, a imagem desse instantâneo de irracionalidade transbordou da boca ou de algum canto secreto onde ressoam as vozes que a habitam.
Já não era possível suster a água.
(You drove me, nearly drove me out of my head While you never shed a tear remember, I remember all that you said told me love was too plebeian told me you were through with me and now you say you love me well, just to prove you do come on and cry me a river, cry me a river I cried a river over you)
Então um eco, um aplauso. Não só a vira e ouvira como estava ali, de pé e sorria. Não percebia porquê, mas o homem do círculo carregava o mar e não eram os olhos, esse cliché, era o movimento ligeiro do corpo, o som da forma como expirar e inspirar se tornava brisa, uma asa.
Conhece, perguntou ela, como se fosse comum estar ao anoitecer no chão, na terra, debaixo de uma romãzeira a cantar baixinho.
Julie is her name, disse ele.
Conhece, portanto, disse e pensava que certamente ele quereria saber o que estava ela ali a fazer e novamente escaparia do momento a possibilidade de sentir qualquer coisa como a normalidade. Mas não. Ele sentava-se.
Gosto desta árvore e dos seus frutos, disse ele.
Ela fixou-se dentro de si mesma e por momentos percebeu que surpreendentemente o peso do irremediável, o tempo, a dor fina entre a mão e o peito a atravessar o braço eram formas vagas.
Gosto desta árvore, de imaginar que um dia será o mastro do meu barco, disse ela. Sabe navegar, perguntou ele.
Aprende-se no mar a navegar, disse ela, citando uma história que lera há muito tempo. Penso nisto como quem abraça o esquecimento, sabe, penso em árvores, continua ela, no "adynaton" que é a vida, quando as suas raízes se dirigem para cima e não a copa. Eu a arder por dentro. Febre e estremecimento. Alguma tristeza. Abandono. Deveres e afazeres. Muito ruído e uma dor fina. Estou cansada, disse.
Sente-o agora, neste momento em que juntos, e contrariando toda a lógica, um homem e uma mulher se encontram, sem razão, num local improvável, perguntou ele.
Não, respondeu ela, agora parece ter parado qualquer coisa, o relógio, o planeta. Talvez seja esta a hora. É já tempo de partir, disse ela como quem canta.
Como, perguntou ele.
Terei o meu próprio barco e buscarei o meu jardim, disse ela.
Sozinha?
Talvez.
Quero ir também, mas como alimentarei a minha vontade, perguntou ele hesitante.
Tenho uma maçã para dividir, disse ela.
Matará a minha fome, disse ele. E o nome, perguntou ele, sobre o barco.
É nosso e basta, disse ela, em nós está o mar inteiro e a voz é a nossa, nossas todas as palavras que teremos para dar a tudo o que encontrarmos.
A noite era clara ou uma luz algures brilhava na linha do horizonte. No centro da névoa, como braços que se estendem, a romãzeira cumpria o seu propósito unindo a terra ao céu.
Vanda Ecm, dezembro de 2018
A Nave dos Loucos aporta ao Jardim das Delícias
O Jardim das Delícias, 8 e 9 dezembro 2018, Casa das Andorinhas, Coimbra
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