
De tanto olhar os meus olhos deixaram de ver - Bartleby e a fotografia
Uma noite com Bartleby reúne um conjunto de trabalhos de fotografia, pintura, desenho, instalação e performance à volta do conto de Herman Melville sobre Bartleby, uma personagem enigmática na Wall Street de finais de oitocentos.
Os autores partiram do texto de Melville e desenvolveram múltiplas leituras quer da personagem quer da sua condição particular de escrivão que se nega à escrita e refugia numa total imobilidade e inacção, patente na locução I would prefer not to e que, no limite, o levará à morte. Bartleby fala-nos de um spleen urbano de finais do século XIX, da solidão do homem perdido no labirinto burocrático da sociedade industrial e nos espaços dessa solidão representados pelas moradas indistintas do novo mundo dos serviços.
Uma noite com Bartleby surge como uma reflexão inacabada sobre a condição do indivíduo na sociedade contemporânea no contexto da crise global que se vive, da economia à política, da intimidade ao desejo.
Apesar de não haver uma referência explícita ao mundo das imagens, o narrador acaba sempre por tentar criar no leitor uma imagem precisa de Bartleby e da sua estranha condição através de descrições claras e objectivas. E aqui parecem surgir três aspectos em que a narrativa de Melville se cruza com diferentes conceitos que importam para a fotografia.
Podemos começar logo pela profissão de Bartleby, empregado num escritório de advogado com a função de fazer cópias de diversos textos legais ou seja, por um lado temos a multiplicação do texto e por outro a verificação da exactidão e da sua veracidade. À época, a fotografia não só tinha vindo resolver o problema da reproductibilidade da imagem, como era considerada um certificado de verdade, um atestado de veracidade em relação à realidade representada. Até ao aparecimento da fotografia as imagens para serem reproduzidas ou eram copiadas à mão, um exemplar de cada vez, com todas as alterações inerentes ao processo de cópia, ou utilizavam o processo mecânico da gravura que, a partir de uma matriz (que no caso da imagem reproduzir uma imagem pré-existente como era o caso das obras de arte era ela mesmo já uma interpretação do original) replicava a imagem as vezes que fossem necessárias, estabilizando assim pelo menos o lado formal do conteúdo. Podemos levantar aqui uma questão interessante que se prende exactamente com a relação entre forma e conteúdo. Num texto, independentemente da caligrafia e ressalvando o erro (com excepção para a poesia visual e experiências semelhantes) o conteúdo mantém-se inalterado de cópia para cópia e apenas o valor simbólico de algum exemplar altera o estatuto documental do documento. Na reprodução de um desenho pelos processos clássicos da cópia manual, não é só a forma que se altera como o próprio conteúdo devido às alterações que o próprio procedimento vai introduzindo. E este foi um dos problemas que a fotografia veio resolver na questão da fidelidade da reprodução, da cópia. Bartleby, enquanto copista, e contemporâneo dos primeiros processos de reprodução foto-mecânicos, pertence a um mundo em desaparecimento.
De seguida podemos encontrar a ideia da imobilidade de Bartleby que, segundo o narrador refere por diversas vezes, ficava imóvel por longos períodos de tempo. A imobilidade era inerente à fotografia num duplo sentido: por um lado era necessário que o fotografado permanecesse imóvel para poder ser registado (dados os longos tempos de exposição requeridos pelos primeiros processos fotográficos) e por outro a fotografia imobilizava, cristalizava um fragmento do espaço, num momento mais ou menos dilatado do fluxo temporal. Espaço e tempo unem-se no processo fotográfico de um modo muito particular e podemos encontrar ecos dessa relação ao longo da narrativa entre o espaço despojado em que Bartleby existe e se move num quase imobilismo que é também o da sua permanente negação à acção.
Por último há um elemento na narrativa que tem uma longa tradição na história da representação: a janela. Ao longo do tempo a sua função na pintura foi mudando para além dos significados precisos que poderá ter no contexto de cada representação. A janela é uma abertura, normalmente para o exterior, uma abertura para a paisagem e para o mundo. A fotografia foi desde o início considerada uma janela aberta para o Outro/eu e a linguagem fotográfica está carregada dessa ideia desde a janela do visor que define o enquadramento à janela do passepartout que nos delimita a imagem a mostrar. A janela de Bartleby é cega e já não dá para lugar nenhum.
A terminar podemos pensar com Vila-Matas, que nos fala de uma literatura do Não e do abandono da escrita, se poderia existir alguma coisa equivalente na fotografia. Se o excesso de escrita leva o escritor a não escrever, poderá o excesso de imagens levar o fotógrafo a não fotografar? Alexander Gardner (1821-1882) ou Roger Fenton (1819-1869) abandonaram a determinada altura das suas vidas a prática da fotografia, desiludidos pelo caminho demasiado comercial que esta estava a levar. Nos anos finais da película vendiam-se muito mais rolos que os entregues para revelação e uma expressiva percentagem destes não era levantada. Hoje, existem inúmeros sites com fotografias abandonadas pelos autores (que não registam da sua parte qualquer tipo de actividade). Num tempo não muito distante, Garry Winogrand (1928-1984) um dos expoentes máximos da chamada fotografia de rua, deixou 2500 filmes por revelar, 6500 que tinham sido revelados mas dos quais nunca tinha sequer feito uma prova de contacto e 300 provas de outros tantos filmes aparentemente sem qualquer tipo de edição ascendendo, na totalidade, a mais de 300 000 fotografias que nunca viu. A compulsão do acto fotográfico, por vezes é superior ao desejo efectivo de representação.
francisco feio, Junho 2010
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