Pelo direito à cultura e pelo dever de cultura!
Em Dezembro de 2005, um conjunto de sessenta cidadãs e cidadãos de Coimbra manifestou publicamente a sua preocupação com a forma como estava a ser conduzida a política cultural da Câmara Municipal. Num documento intitulado “O saneamento básico da cultura”, chamava-se a atenção para dois aspectos fundamentais: o corte de 60% nas verbas destinadas à cultura no orçamento para 2006 e a falta de respeito por alguns dos agentes culturais da cidade, evidenciada nas expressões com que os responsáveis autárquicos a eles se referiam e nas suas atitudes reveladoras de uma visível e ofensiva falta de cultura democrática. Alertava-se para o péssimo prenúncio que tal comportamento configurava para o seu segundo mandato que então se iniciava.
Dois anos depois, as piores expectativas foram ultrapassadas. Coimbra é hoje uma cidade amarfanhada do ponto de vista cultural, que só não se tornou absolutamente insignificante a nível nacional graças à actividade que, no limiar da sobrevivência, os poucos agentes culturais que ainda restam conseguem ir desenvolvendo. A Câmara Municipal já não se limita a não apoiar devidamente a actividade cultural que aqui é feita; assume-se, pelo contrário, como um elemento dificultador e tendencialmente destruidor do potencial de criação artística que a cidade possui e que é uma das suas principais mais-valias.
O orçamento aprovado para 2008 é apenas o exemplo mais facilmente quantificável desse comportamento da autarquia. As verbas para a cultura sofreram um novo corte de 3 milhões de Euros, sendo hoje menos 80% do que em 2004. O investimento público na cultura atingiu, assim, o grau mais reduzido e insignificante. Uma cuidada análise do orçamento revela que as verbas com que este pulmão de vida e de cidadania de uma sociedade democrática e participativa deveria ser contemplado nem sequer atingem o limiar da simples manutenção. E os discursos com que os responsáveis autárquicos pretendem justificar-se, iludindo as questões e distraindo os munícipes, não passam de um mar de contradições, demonstrando um vazio total de ideias sobre o papel da cultura no desenvolvimento da cidade e no exercício da cidadania. Não há plano estratégico cultural a curto, médio e longo prazo para a cidade de Coimbra e para o seu município, não há definição de objectivos, não há definição nem quantitativa nem qualitativa de resultados a atingir, não há planificação dos recursos a mobilizar, não há definição nem de dinâmicas internas a desenvolver (sobre a cultura na cidade e no concelho), nem de dinâmicas externas a incentivar (sobre a ligação cultural de Coimbra a Portugal, à Europa e ao Mundo). Não há política de construção, de gestão e de programação de espaços culturais, quer para espectáculos de dança, música e teatro, quer para exposições de artes visuais, excepto se se considerar que a omissão e a alienação dessa capacidade de programação a entidades exteriores a Coimbra é uma forma de política. O programa e o regulamento de apoio à actividade cultural das colectividades já não é cumprido desde o ano das eleições autárquicas. Há, em contrapartida, uma asfixia dos recursos e dos agentes culturais e há um desbaratar do património constituído, numa demonstração paralisante de mediocridade e provincianismo, bem patente na falta de condições e dignidade com que é desenvolvida na Casa da Cultura uma parte significativa das suas actividades, entre o átrio das casas de banho transformado em espaço de exposições e uma garagem imunda e sucessivamente inundada a servir de entrada para um teatro-estúdio que só o esforço do grupo nele instalado consegue manter em funcionamento. As intersecções da cultura com a educação e o ensino e a política de bibliotecas, de arquivos e de promoção da leitura têm sido praticamente ignoradas em termos de planificação e algumas iniciativas avulsas não escondem a falta do investimento político nestas áreas.
Quem acredita que a Câmara Municipal fez algum esforço para ser Capital Europeia da Cultura, quando o investimento que está disposta a fazer nesta área é cada vez menor? Quem acredita que este executivo quer efectivamente instalar um novo Teatro Municipal no Convento de São Francisco, quando nem sequer consegue dar condições mínimas ao Centro de Artes Visuais e ao Teatro da Cerca de São Bernardo, recusando-se a pagar as despesas com a electricidade? Que incentivo sentirão os novos grupos e criadores (na área do teatro e da música, por exemplo) se a desastrosa gestão dos espaços municipais que existem continua a arredá-los de qualquer possibilidade, sequer, de partilharem um espaço? Que tipo de programação cultural se pode esperar, quando a Câmara deixou de ter qualquer protocolo com o TAGV, a principal sala de espectáculos da cidade e deixou cair ou abandonou os principais eventos que colocavam Coimbra na rota da cultura em Portugal?
Que tipo de política cultural se pode esperar de um executivo que insiste em amesquinhar publicamente os agentes culturais da cidade, denegrindo a actividade que desenvolvem, forçando-os a assinar protocolos que ameaçam a sua própria subsistência, procurando virá-los uns contra os outros e utilizando-os para acções de auto-homenagem? Chegou-se a um ponto em que, mais do que qualquer outra prerrogativa, é respeito aquilo que se reclama: respeito pelos que se dedicam à actividade cultural neste concelho – pelo seu direito à vida, à liberdade, à capacidade de acção; respeito pelo direito à cultura de uma cidade que se quis capital cultural do país e que se diz ser cidade do conhecimento; respeito pelo dever de cultura de quem, também em nosso nome, vai tendo a responsabilidade de a governar.
Em resposta às críticas que têm sido feitas, encontramos sempre duas linhas de argumentação: a do vereador da Cultura, que nas suas crónicas semanais de crítica aos “intelectuais” insiste na mais que ultrapassada dicotomia entre “cultura popular” e “cultura de elites”, agarrado a conceitos que já só fazem sentido na sua cabeça; e a do presidente da Câmara, que reserva para si próprio o anúncio dos “grandes projectos” e o facilitismo das acusações ao “discriminador” governo central, num exercício de auto-vitimização que se tornou slogan.
É manifestamente muito pouco para seis anos de mandato. É manifestamente muito grave nos efeitos que produz sobre a dinâmica e a oferta para quem vive nesta cidade. E é sobretudo muito triste que Coimbra continue espartilhada nesta forma de encarar a actividade cultural e a criação artística e amarrada a uma tão grande incompreensão sobre o papel destas actividades no desenvolvimento das pessoas e da comunidade.
Por isso tomamos esta posição pública. Para dizer que já chega. Para mostrar que não aceitamos com naturalidade a redução sistemática das verbas destinadas à cultura. Para apelar a uma urgente inversão de rumo, antes que seja demasiado tarde e Coimbra perca em definitivo qualquer possibilidade de se afirmar como o pólo cultural de referência que, para além dos rótulos balofos e das placas de auto-estrada, pode efectivamente ser.
Coimbra, 23 de Janeiro de 2008.
Abílio Hernandez, Adérito Araújo, Adília Alarcão, Adriana Bebiano, Albano da Silva Pereira, Alexandra Teles Monteiro, Alexandre Alves Costa, Alexandre Ramires, Amílcar Cardoso, Ana Cristina Macário Lopes, Ana Pires, André Ferrão, André Granjo, António Andrade, António Arnaut, António Augusto Barros, António Dias Figueiredo, António Jorge, António José Martins, António José Silva, António Marinho Pinto, António Sousa Ribeiro, António Tavares Lopes, Augusto Monteiro Valente, Boaventura de Sousa Santos, Carlos Antunes, Carlos Ascenso André, Carlos Fiolhais, Carlos Fortuna, Carlos Madeira, Carlos Reis, Catarina Martins, Claudino Ferreira, Conceição Berardo, Cristina Janicas, Cristina Martins, David Cruz, Deolindo Pessoa, Desirée Pedro, Eliana Gersão, Elísio Estanque, Emanuel Brás, Eneida Nunes, Ernesto Jorge Costa, Eugénia Cunha, Fátima Carvalho, Fernando Catroga, Fernando Martinho, Fernando Matos Oliveira, Fernando Meireles, Fernando Taborda, Francisco Allen Gomes, Francisco Amaral, Francisco Paz, Francisco Queirós, Gonçalo Barros, Gonçalo Luciano, Helder Wasterlain, Helena Faria, Helena Freitas, Henrique Madeira, Inês Borges, Isabel Calado, Isabel Campante, Isabel Craveiro, Isabel Cristina Pires, Isabel Maria Luciano, Joana Castanho Sobral, Joana Monteiro, João Bicker, João Curto, João Figueira, João Maria André, João Mesquita, João Miguel Lameiras, João Paulo Dias, João Paulo Janicas, João Pinto Ângelo, João Ramalho Santos, João Silva, João Vaz Silva, Joaquim Gomes Canotilho, Joaquim Machado, Jorge Alarcão, Jorge Pais de Sousa, Jorge Ribeiro, José Alberto Monteiro Gabriel, José António Bandeirinha, José Augusto Ferreira da Silva, José Bernardes, José Dias, José Faria e Costa, José Manuel Costa, José Manuel Pureza, José Miguel Gonçalves, José Reis, José Vieira Lourenço, JP Simões, Lúcio Cunha, Luís Januário, Luis Lobo, Luis Martinho do Rosário, Luis Quintais, Luís Reis Torgal, Luis Sousa, Luisa Lopes, Manuel Guerra, Manuel Portela, Manuel Rocha, Manuela Cruzeiro, Margarida Mendes Silva, Margarida Paiva, Margarida Viegas, Maria Helena Caldeira Martins, Maria Irene Ramalho, Maria João Seabra, Maria Manuel Almeida, Maria Manuela Vaz de Carvalho Berardo, Mário Montenegro, Mário Nogueira, Marisa Matias, Natércia Coimbra, Nuno Patinho, Nuno Porto, Nuno Rilo, Ofélia Libório, Osvaldo Silvestre, Paula Abreu, Paulo Abrantes, Paulo Bernaschina, Paulo Corte-Real, Paulo Fonseca, Paulo Furtado, Paulo Mora, Paulo Peixoto, Pedro Dias da Silva, Pedro Hespanha, Pedro Medeiros, Pedro Rodrigues, Ricardo Seiça, Rita Marnoto, Rita Marquito, Rui Bebiano, Rui Cunha Martins, Rui Damasceno, Rui Lobo, Rui Namorado, Rui Pena Reis, Rui Valente, Serafim Duarte, Sílvia Brito, Sofia Lobo, Susana Lobo, Susana de Matos Viegas, Susana Paiva, Teresa Portugal, Teresa Santos, Tiago André, Toni Fortuna, Vasco Pinto, Vital Moreira, Vitor Torres
in Amigos da Cultura
7 comentários:
Não deixa de ser surpreendente que surjam nestas iniciativas as mui tradicionais listas de nomes tão sonantes, ao invés de nomes de cidadãos que ninguém conhece de parte nenhuma, a não ser das ruas, das filas do Continente, do café do bairro, etc., já que a cidade de Coimbra tem ainda alguns milhares de sobra para o efeito. O sonante Albano da Silva Nunes, por exemplo, que tanto chora a famigerada falta de subsídios, não tem feito mais do que apropriar-se sistematicamente do terreno fértil da fotografia - que ninguém fazia ou conhecia enquanto expressão artística, antes dele, como se sabe - para continuar uma espécie de mandato vitalício, actualmente com residência ao Pátio da Inquisição.
Isso da lista de nomes sonantes não é verdade. Este parece-me um movimento de cidadania aberto e participado já que ontem subscrevi o texto e hoje já lá colocaram o meu nome e mandaram um mail a informar que avisaram de iniciativas que surjam e a pedir um testemunho das razões que me levaram a subscrever o texto "e/ou acrescentar argumentos, pontos de vista e quaisquer outros contributos que entenda pertinentes". Depois esse texto será publicado lá no blog...
Na lista em questão estão nomes que muito respeito, alguns, que admiro, outros, por quem sinto afecto, também, ainda e espero que sempre. Não acredito em pessoas sem erros, mas assusta-me que um colectivo assim possa ter entre os seus signatários uma pessoa que reclama a ausência de apoios para um projecto para a cidade mantendo um discurso permanente na primeira pessoa, como se todo o trabalho realizado não fosse o fruto de uma equipa (dispersa, ao longo do tempo) para o comum dos cidadãos.
Às vezes, o conhecimento de um percurso atribulado de crescimento, como se sabe que tem sido o da divulgação e mostra de fotografia - neste caso em Coimbra - deixa omissas outras questões, que nem por isso são menos pertinentes. Nunca ouvi qualquer referência daquele homem aos companheiros de estrada, pessoas a quem ele possa agradecer coisas como solidariedade, esforço, generosidade, amizade. Em contrapartida, lê-se e ouve-se sobre todos os nomes de fotógrafos ilustres que trouxe para conhecimento dos indígenas, pobres incultos. Também nunca consegui perceber como é feita a remuneração de um trabalhador exaurido e sacrificado destes. Quem estabelece os honorários do senhor? E dos funcionários/colaboradores?
Depois dele, ninguém?
Antes dele, ninguém?
Mas que não fique a impressão, Hugo, que alguma coisa me move contra a iniciativa. Não move, bem pelo contrário, e espero que muitas daquelas pessoas tenham tempo para fazer mais do que dar o nome que ajuda a lançar o grito de partida.
Ainda não percebi de quem estamos a falar..
De qualquer das maneiras um colectivo é um colectivo.. São raros os casos em que temos à frente do colectivo pessoas suficientemente capazes e de total abnegação para que a liderança do movimento se faça passar por ela e que ofusque - e às vezes seque - o que a rodeia.
Ainda para mais as massas podem ser desinformadas mas não são burras.. E nem mesmo é este o caso.. porque olhando para a lista de signatários temos proeminentes concidadãos das mais variadas forças vivas da cidade.
Por fim, parece-me que não devem ser muitas daquelas pessoas a ter tempo para fazer mais.. devem ser todas.. e devemos ser nós.
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